A creatinina sérica continua sendo um dos marcadores mais utilizados na prática clínica para estimar a função renal. No entanto, a interpretação isolada desse exame pode levar a falsos diagnósticos de Doença Renal Crônica (DRC), especialmente em pacientes que fazem uso de suplementação de creatina.
Por muito tempo, a creatina foi erroneamente vista como nefrotóxica, levando médicos a suspenderem sua suplementação sem uma base científica sólida. Hoje, a Medicina Baseada em Evidências (MBE) tem demonstrado que essa preocupação era, na maioria dos casos, infundada.
Vamos entender como a creatina pode afetar a creatinina sérica e quais estratégias devemos adotar para evitar diagnósticos equivocados.
📌 Creatina e Creatinina: Entendendo a Diferença
A creatina é um composto essencial para o metabolismo energético muscular, armazenado no tecido muscular esquelético. Uma pequena fração da creatina é convertida espontaneamente em creatinina, que é então excretada pelos rins.
📊 Fatores que influenciam a creatinina sérica:
✔️ Massa muscular
✔️ Nível de atividade física
✔️ Hidratação
✔️ Ingestão de proteínas
✔️ Suplementação de creatina
Portanto, quando um paciente inicia a suplementação, a creatinina sérica pode aumentar sem que isso represente uma redução real da taxa de filtração glomerular (TFG).
🔎 Por Que a Creatina Foi Considerada Nefrotóxica?
Historicamente, a ideia de que a creatina era prejudicial aos rins surgiu a partir de extrapolações equivocadas de estudos experimentais e observacionais com limitações metodológicas. Muitos médicos associavam o aumento da creatinina sérica à lesão renal, sem considerar que esse biomarcador não mede diretamente a função renal, mas sim a excreção de um metabólito da creatina.
Estudos mais recentes, controlados e bem conduzidos, não demonstraram associação entre suplementação de creatina e disfunção renal em indivíduos saudáveis (1,2).
🏥 Quando a Creatina Pode Levar a um Diagnóstico Falso-Positivo de DRC?
Um erro comum é usar exclusivamente a fórmula CKD-EPI baseada em creatinina para estimar a TFG em indivíduos que suplementam creatina. Veja um exemplo:
📊 Caso clínico fictício:
Paciente saudável, sem histórico de doença renal, creatinina basal de 1,0 mg/dL.
Após suplementação de creatina, creatinina aumenta para 1,2 – 1,3 mg/dL.
Aplicação da fórmula CKD-EPI pode estimar erroneamente uma TFG < 60 mL/min/1.73m², sugerindo DRC estágio 3A.
Este tipo de erro tem levado médicos a recomendarem interrupção desnecessária da creatina, algo que não encontra respaldo na literatura científica atual.
🩺 Como Diferenciar uma Elevação Benigna da Creatinina de uma DRC Verdadeira?
🔬 1️⃣ Dosar Cistatina C
Diferente da creatinina, a Cistatina C não é influenciada pela massa muscular ou suplementação.
A fórmula CKD-EPI Creatinina + Cistatina C melhora a precisão da estimativa da TFG.
💧 2️⃣ Avaliar a Proteinúria
A DRC verdadeira frequentemente apresenta albuminúria/proteinúria.
Uma creatinina isoladamente elevada, sem proteinúria, sugere um falso positivo.
📉 3️⃣ Comparar com Valores Basais
Se a creatinina sempre foi normal e subiu após o início da suplementação, a elevação pode ser esperada e não patológica.
📌 4️⃣ Realizar um Clearance de Creatinina
Quando há dúvida diagnóstica, a coleta de clearance de creatinina urinária de 24h pode ser útil.
⏳ 5️⃣ Suspender Temporariamente a Creatina
Se a creatina for interrompida por 1 a 2 semanas, a creatinina deve retornar ao basal se a função renal estiver normal.
🔬 MBE e a Evidência Atual Sobre Creatina e Rim
A Medicina Baseada em Evidências tem desmistificado o receio sobre creatina e função renal. Estudos recentes demonstram que:
📖 1. Suplementação de creatina não causa dano renal em indivíduos saudáveis
Uma revisão sistemática analisou ensaios clínicos e não encontrou evidências de nefrotoxicidade da creatina em longo prazo (1).
📖 2. Atletas suplementados com creatina não apresentam pior função renal
Estudos longitudinais mostram que mesmo doses elevadas (20g/dia na fase de carga) não impactam adversamente a TFG (2).
📖 3. Pacientes com DRC podem se beneficiar da creatina
Algumas evidências sugerem que a creatina pode ter um efeito protetor na sarcopenia associada à DRC, mas mais estudos são necessários (3).
🚨 Conclusão: Diagnósticos Precisos e Baseados em Evidências
A creatina não é nefrotóxica e não há justificativa científica para suspender sua suplementação em indivíduos saudáveis devido ao aumento da creatinina. O erro histórico de associar creatina com lesão renal ilustra os perigos da prática clínica sem evidências robustas.
Para evitar falsos diagnósticos de DRC, é essencial utilizar uma abordagem mais precisa, incluindo Cistatina C, avaliação da proteinúria e comparação com valores basais.
🔬 A prática médica deve evoluir com as evidências científicas. Suspender a creatina sem necessidade pode privar pacientes de seus benefícios sem qualquer embasamento sólido.
🔎 Referências
1️⃣ Kreider RB, Kalman DS, Antonio J, et al. International Society of Sports Nutrition Position Stand: Safety and Efficacy of Creatine Supplementation in Exercise, Sport, and Medicine. J Int Soc Sports Nutr. 2017;14:18.
2️⃣ Candow DG, Forbes SC, Little JP, et al. Creatine Supplementation for Older Adults: A Focus on Sarcopenia, Fracture Risk, and Cardiometabolic Health. Nutrients. 2019;11(4):871.
3️⃣ Rodrigues LR, Rogero MM, Borges MC. Effects of Creatine Supplementation in the Context of Sarcopenia and Inflammation in Chronic Diseases: An Overview of Systematic Reviews. Nutrients. 2020;12(5):1296.